terça-feira, 29 de abril de 2008

Ouvir a voz da Sabedoria

O sol incidia vigorosamente sob fachada branca do antigo casarão gerando certo desconforto aos olhos, aos poucos começavam a acostumar-se com a claridade luminosa refletida, desvendando a beleza minuciosa de sua arquitetura. Pilares imponentes e grandes janelas de vitral sob fundo verde, deslocam a atenção. Na entrada do casarão, uma das paredes ostenta uma placa condecorativa. Nela, data, nome da instituição e de sua idealizadora guardam discretamente a memória desse lar, que comemora no dia 8 de maio o seu quadragésimo quinto aniversário de fundação.
A Casa dos Velhos da cidade de Cachoeira apresenta-se assim, como um lar modesto e aconchegante destinado a acolher, cuidar e proteger os idosos. A instituição, que sobrevive com recursos escassos e do apoio de doações e campanhas realizadas pela comunidade, ampara 38 velhinhos. A minha visita, uma missão, resgatar suas trajetórias de vida, suas expectativas, alegrias e frustrações. Histórias que se confundem e dialogam. Pessoas, que merecem o nosso mais absoluto respeito e carinho.

A visita não era esperada, daí a surpresa do seu olhar, contudo de forma majestosa senta-se ao meu lado, e mesmo não me conhecendo, seus lábios imprimem modesto sorriso. Pele sensivelmente branca, fisionomia cansada, traços visíveis que o tempo imprimiu ao longo dos seus 81 anos de vida. Ubaldina Valquiria Rodrigues, é como se apresenta de forma lúcida. Seu olhar revela-se terno, introspectivo; ligeiramente desconfiada, sua voz palpita por instantes ao ser interrogada sobre seu passado, dúvidas parecem rondar seus pensamentos, manifestando-se levemente por expressões em sua face. Aos poucos, descortina sua história.
Aposentada, revela que começou a trabalhar ‘novinha’, em fábricas de charuto de Cachoeira. Aos quinze anos na Leite Alves, passava os charutos na gelatina, empacotava-os. Trabalhou aos vinte na Suerdick, até esta abrir falência, enquanto sua mãe trabalhava na Costa Pena em São Felix.
Relata o gosto por procissões e novenários, como o de Nossa Senhora do Rosário e Nossa Senhora da Ajuda, lembradas rigorosamente por suas datas comemorativas, mas também, confessa ter freqüentado bares e festas: “No terno, saia na frente do cordão”. Recorda as amigas com um ar de orfandade, pois destas, só resta ela: “não tenho mais a mesma alegria”, afirma.
Sobre a família, apenas parentes distantes, exceto uma sobrinha, que não a visita faz um tempo. Teve um filho, que faleceu aos 2 anos, por um motivo que não soube bem explicar, ‘uma febre que não passava’. Sua mãe morrera do coração, pouco tempo depois. Assuntos que a sensibiliza e que a fazem falar de forma pousada, receosa.
A saúde lhe falta, conta que já são 8 as cirurgias que teve de fazer, numa delas retirou por completo a mama esquerda, o ovário; na mama direita também fez cirurgia para a retirada de um caroço. Atualmente queixa-se das varizes, e relembra as tarefas que realizava cotidianamente na casa de seus antigos patrões em Salvador, onde trabalhou como doméstica, durante muitos anos.
Após seus patrões terem falecido, e não lhe restar nenhum ente familiar que pudesse tomar conta dela, a trouxeram para o abrigo, quando Gésia ainda o coordenava. Lúcia de Sousa Batista, atual administradora da Casa dos Velhos, conta que Gésia Miralva Santana, foi a idealizadora desse abrigo, e que antes de ter uma casa para abrigar idosos, recolhia-os das ruas, improvisa garagens e pequenos espaços para cuidar dos velhinhos, dependia do apoio e da caridade das pessoas. Hoje, a instituição passa por grandes variações, como relata Lúcia em conversa comigo, “lhe damos com a teoria da contingência, não podemos pensar somente no agora”.
Desde que trouxeram Dona Ubaldina para o abrigo já se passaram 11 anos. Desejava ter alguém por perto, familiares, amigos. Por isso, gosta dos domingos, dia em que recebe visita, geralmente de evangélicos: “gosto de ouvir eles falarem de Deus, já que não posso ir à missa por causa das pernas” e revela um desejo: - “Peço a Deus para descansar”.
O abrigo comporta em grande parte velhinhos que vivem a realidade social experimentada por Dona Ubaldina, que sem qualquer vínculo familiar acaba tendo o abrigo como única opção, apenas 4 a 5 % dos velhinhos que residem no abrigo possuem famílias. Lúcia relata que na Casa dos Velhos, existem três tipos específicos de internos: uma pequena minoria que se interna por conta própria, os que por opção familiar, em função dos cuidados exigidos pela velhice, confiam à instituição os seus entes idosos, e por último, a grande maioria, os que por denuncia de maus tratos e por deficiência própria, já não são mais capazes de cuidar de si próprios.
Dona Antônia Santos, “que de santo não tem nada” como declara, tem 92 anos e faz parte da pequena minoria que procura o abrigo por conta própria. Pele negra, semblante afetuoso, usa colares de pérola no pescoço, brincos, anéis e um relógio no pulso, assessórios pessoais que a sua vaidade jamais deixa de exibir.
Com voz altiva, lucidez espantosa, entusiasmo invejável, mal se apresenta e de forma desinibida começa a me relatar aspectos de sua vida. O nome, ‘Antônia’, confessa ter sido resultado de uma promessa de sua mãe a Santo Antônio, para que o santo a desse um bom parto, e lembra: “foi numa sexta-feira, dia 18 de fevereiro de 1916 que nasci”.
O pai era vigilante da ponte da estrada de ferro, a mãe engomadeira de ricos senhores da região. Ainda menina, destalava fumo nos armazéns, rigorosa com números e datas releva ter aprendido em 1936 a fazer charutos com sua mãe, e de ter iniciado em 1937 na Suerdick, uma longa vida de trabalho, 33 anos, dedicados ao fumo.
Ainda consegue listar a identificação dos diferentes charutos com que trabalhava constantemente: “nº 3 cataflor, a nº 4 era.....ô meu Deus!” uma pausa, um esforço à sua memória, prossegue, “26 holandeses, 49 ouro de cuba, hum agora é que me lembrei, nº 4 era florinha!”. Classificações extensas que por anos exigiram rigor na memorização, talvez esteja aí o motivo de seu fascínio por referenciar os acontecimentos de sua vida por datas, idades e números.
Teve seis irmãos, deles só uma irmã ainda vive, mora em São Paulo. “Foi minha sobrinha que me trouxe pra cá”, a idade e a saúde já não a fazem mais se adaptar a climas diferentes do que sempre esteve acostumada. E diz, “não quis ir com ela pra São Paulo, e não achei ninguém pra ficar comigo, aí o jeito que teve foi vir pra aqui”. Mora no abrigo a 8 meses, desde o dia 22 de agosto, quando uma neta de consideração que cuidava dela casou e não teve mais como dividir atenções.
Mostra a foto do casamento da neta com orgulho, fala da festa de casamento e da sua paixão por dança. Revela ter sido a nº 1 numa festinha de Natal realizada pelo abrigo, expondo a embalagem do prêmio que recebeu por sua habilidade e entusiasmo com a dança.
Lembra de sua mocidade, das festas e bailes de carnaval, da beleza dos trios, dos carnavais nos clubes, das pranchas, carros alegóricos, das tradições regionais que seguia à risca, desfilando de careta por dois dias seguidos na festa de Maragojipe. Fala de sua eterna paixão por Albertino Francisco, que morreu há dois anos. Um quadro desenhado por um retratista eterniza a união de ambos e a faz recordar saudosamente desse amor. Conta que ele era casado com outra mulher, contudo chegaram a morar juntos, e tiveram um filho, que morreu aos quatro meses de vida por motivos que não sabe ao certo explicar. Hoje, transpõe todo cuidado e o carinho à suas bonecas que ficam em sua mesinha, as quais chama de “filhas”.
Uma pausa para olhar no relógio, mãos ajustam o óculos no rosto, certa dificuldade em enxergar as horas é percebida, a preocupação com o horário é devido a programação da TV: - “Gosto de vê Malhação e a Novela das 6 hs”. Tece comentários sobre o vilão, conta as suas preferências e expectativas. Confessa que é pela TV que frequentemente assiste missas, e que na mesinha da televisão um copo com água aguarda diariamente para ser bento pelo padre Robinson, mais é do Padre Marcelo que a foto na parede chama sua atenção, “gosto muito do Padre Marcelo”.
Gosta de ouvir músicas na rádio, seus ritmos prediletos são bolero, sertanejo, samba, mas se enche de entusiasmo para cantar uma música a que adora, cuja letra a anima: “ela canta e eu danço, ela canta e eu danço...”. E releva ainda gostar de poesias, e não se abstêm de recitá-las, uma delas chama atenção:
A Lua
Como vem tão vagarosa,
Ó formosa e branca lua
Vem com a tua luz serena
Minha pena consolar
Geme aos céus, fogueiras antigas
Arma o vento contra o vento
Renova o meu tormento
E me obriga a suspirar

Por um momento, é interrompida por um senhor que passa pelo corredor e não se aflige em cumprimentá-la. Ela o apresenta com certo carinho, diz ser um dos bons amigos no abrigo, “Oi camarado!” fala com euforia. Ele resmunga baixinho algumas palavras, parece reclamar da hora que o café será servido, se apresenta como Gildásio. Pergunto a Dona Antônia se é ele o seu parceiro de dança. Ele se encarrega de responder por ela: “não eu não danço não, quando eu era jovem só catava muito”. Despede-se da gente a passos cuidadosos.
Mais tarde, em conversa com Sr. Gildásio, ele conta ter sido internado contra a vontade no abrigo, conforme ele, foram os vizinhos que não o queriam por perto. Lucia relata, “foram os vizinhos do Sr. Gildásio que ligaram para a justiça, já que ele vivia sozinho, perambulando, não se cuidava mais, se alimentava mal, sua casa estava num estado lastimável”. Por último completa, “luto constantemente contra a visão ruim que se têm dos asilos; as pessoas que estão aqui, são pessoas que trabalharam muito e que à altura da vida necessitam ser cuidadas”.
Em Cachoeira, apenas a Delegacia e o Ministério Público são responsáveis pela garantia dos direitos dos idosos na cidade. Contudo, Igor Vinícius Oliveira, assistente do Ministério Público, adverte que na cidade são raros os casos de violência contra o idoso e os relatos de desamparo familiar chegam a partir de denuncias feitas pela própria comunidade. “Nos três últimos anos, foram apenas 4 casos que chegaram ao nosso conhecimento, todos por abandono imaterial”, relata.
Conforme o art. 229 da Constituição Federal, abandono imaterial é um crime contra a assistência familiar. Assim como os pais são os responsáveis diretos por assistir, criar e educar seus filhos menores, os filhos maiores, também tem o dever de ajudar e amparar os seus pais na velhice ou enfermidade.
A tarde vai indo embora, Dona Antônia fala que hora de ir para a copa, onde gosta de ficar um pouco com os colegas do abrigo, ajudando as funcionárias a tomar conta de Dona Zezé. No corredor sons se misturam, um rádio com uma música baixinha, grilos se revezam entoando ruídos. Da sacada, varais entrecruzados formam com a roupa limpa uma paisagem curiosa. Passo por uma pequena sala com cadeiras coloridas, sigo em direção à copa, o cheirinho de café toma conta do recinto.
Na copa, encontramos Sr. Gildásio, de guarda esperando pelo café. Dona Celina e Dona Eduarda, de mãos dadas e numa atmosfera de cinema mudo, trocam caricias apenas com olhar. Fico encantada, uma funcionária então me explica: “elas se falam com os olhos, são muito amigas”.
Dona Antônia cumprimenta todos e me apresenta Dona Zezé, uma senhora bem debilitada, que teima em se levantar da cadeira a cada ímpeto de força que consegue acumular. Resmunga em voz alta por um certo Bastião: “quero ir embora”, ela diz repetidas vezes, num clamor desafinado pela voz roca que imprime a cada brado. A funcionária me conta que Dona Zezé chama pelo padrinho já falecido. E que por esta mania de se levantar a golpes fulminantes da cadeira, já se machucou feio.
Mais um ímpeto, e uma frase que toca nossos corações: “quero morer....” diz Zezé, num lamento que mais repercute como uma suplica. Dona Antônia retruca, como uma espécie de consolo: “a gente só morre no dia que Deus quiser!”.

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