sexta-feira, 4 de abril de 2008

Madrugada de treze de janeiro

Por Elton Vitor Coutinho

A aula da faculdade já tinha terminado e eu caminhava em direção a minha casa. Os paralelepípedos que estavam submissos aos meus pés já não me guiavam para lugar algum. Os casarões antigos eram apenas monumentos que não chamavam mais a minha atenção. A ponte D. Pedro II, com suas madeiras mal colocadas e sua estrutura férrea desgastada pelo tempo, me transportava para a cidade-presépio chamada São Félix, a qual eu morava.
Era uma sexta-feira por volta das 12:30. O sol a pino brilhava como as Três Marias em noite de lua cheia. O meu coração amanhecera e permanecera apertado, sufocado e eu não sabia o porquê. Era uma dor insuportável. Aquela mesma dor que eu sempre sinto quando algo de ruim irá acontecer. Um pressentimento.
Peguei a chave do meu bolso que estava em meio a várias moedas, documentos, celular e cartões de crédito e enfiei na fechadura. A porta já nem abria direito por ser bastante velha. Eu morava no primeiro andar da casa e o térreo era um bar chamado Tira-gosto. Subir as escadas em passos lentos. Olhei cada compartimento e apenas eu lá estava. Os amigos com quem eu morava já tinham viajado ou ainda estavam em aula. Não sentir fome nesse dia. Daí comecei a me despir para tirar uma soneca, pois não tinha dormido direito na noite anterior por ter ficado até uma hora da manhã estudando. Antes de deitar peguei o celular para ativar o despertador e lá estava uma chamada não atendida.
O número não era identificado pelo nome, pois não costumo salvar na agenda do celular os contatos de família. Portanto, já sabia, era da casa de minha prima. Quando pensei em retornar a ligação, meu celular logo tocou. Eu atendi. Era o meu primo. A voz dele do outro lado da linha parecia trêmula e cautelosa. Pediu para que eu desse um ponto de referência da minha casa e que me arrumasse rapidamente, pois ele já estava a caminho para me buscar. Meu primeiro pensamento foi um só: meu pai morreu.
Fiquei nervoso, angustiado e só agora compreendi o motivo de ter amanhecido com o coração apertado, meio confuso, com medo. Peguei as primeiras roupas que achei na minha cômoda de madeira com fórmica branca e coloquei na minha mochila de qualquer jeito. Vestir a mesma roupa com a qual tinha ido para a Universidade e sair, com a mochila nas costas, a chorar.
Não sou católico, mas o meu segundo pensamento foi rezar na igreja que ficava em frente a minha casa. Ainda não tinha certeza de nada. Aliás, a única certeza, mesmo não dita pelo meu primo ao celular, é que algo de ruim tinha acontecido com meu pai.
Ele, há doze dias, logo após o reveillon de 2006 para 2007, estava internado no Hospital Santa Izabel, em Salvador. O câncer tinha invadido o seu corpo como o furacão Katrina invadiu a cidade dos Estados Unidos.
Já era treze horas e vinte e oito minutos. Meus dois primos, assustados, acabaram de chegar em São Félix e me encontraram sentado na escadaria da igreja. Arrastaram-me rapidamente para dentro do carro como se fosse um seqüestro. Ele corria muito na BR-324 e eu permanecia imóvel. Preferir não perguntar o que realmente tinha acontecido, pois, para mim, a incerteza é que me confortava. Era como se ainda tivesse a chance de meu pai estar vivo, sóbrio a me esperar.
O celular do meu primo a todo o momento tocava e ele só respondia que em poucos minutos chegaríamos. Quando chegamos próximo ao porto Seco de Pirajá, já saindo da BR, não segurei mais a dúvida e perguntei o que tinha acontecido. Ele só me respondeu que estávamos indo ao hospital e que toda a minha família, parentes e amigos estavam lá.
O que pensar em momentos como esse? O carro parou em frente ao hospital. Lá estavam meus tios, tias, primas, primos e amigos. Abrir a porta do carro bruscamente, tão incrédulo quanto um ateu que não se convence com as palavras de uma cristão. Não falei com ninguém, passei correndo. Minha irmã do meio já se encontrava na recepção a me esperar com o crachá de papel que dava acesso ao quarto do andar de cima. Nada perguntei a ela e continuei a correr em direção ao quarto. Subir ofegante a escada de madeira polida, em forma de aspiral, pulando de dois em dois degraus. O hospital era enorme, mas a minha memória me guiava para o quarto certo, pois já tinha ido lá várias vezes visitá-lo. No corredor, minha outra prima chorava. Também a ela nada perguntei. Invadir o quarto e lá avistei o que mais temia.
Os tubos de oxigênio agora compunham as narinas de meu pai. Ele respirava tão forte que a cada suspiro parecia ser o último. As pernas estiradas sobrepostas a um travesseiro pareciam ter diminuídas. Os olhos estavam cerrados como o fechar de uma cortina em final de espetáculo. A pele branca, agora pálida , não mais correspondia com a sua beleza juvenil.
Eu parei. Parei na porta do quarto e só agora vi minha mãe e minha irmã mais velha vindo ao meu encontro para me abraçar. Gritei. Gritei tão alto que os países próximos escutaram a minha dor. Não consegui chegar perto dele, pois imediatamente me levaram para fora. Ele ainda estava consciente e, por isso, não poderia identificar que alguém ao seu lado sofria. Não poderia se mover, nem me dizer as suas últimas palavras.
Minha mãe saiu comigo e pediu para eu me acalmar. Mas eu não conseguia. Em minha cabeça passava um filme, um filme que tinha início, meio e um fim trágico. Acalmei-me um pouco quando, nos fotogramas desse filme, passavam as cenas felizes que vivemos juntos.
Meu pai ainda não estava morto, mas minha mãe me explicou que não tinha mais jeito. Só estávamos esperando a hora. Seus rins já não mais funcionavam. Eu não conseguia entender e até propus a doar o meu rim. Mas foi inútil. Todos os seus órgãos, exceto o coração, já tinham sido dilacerado pelo câncer que, nesse mesmo ano, matava uma pessoa no mundo a cada quinze minutos.
Eu não mais sabia o que fazer. Aliás, sabia sim. Queria ficar só, preso em um vão escuro onde ninguém me encontrasse. Mas não poderia jamais fazer isso, pois ainda existia minha mãe e minhas duas irmãs que precisavam da minha força. Por isso tomei uma decisão. Comecei a fingir que estava tudo bem comigo. Não mais podia chorar na frente delas, pois elas precisavam ver em mim uma fortaleza como as barras de ferro que sustentam aquela ponte.
A noite chegou e não mais poderíamos ficar no quarto. Minhas irmãs e eu fomos para casa e minha mãe permaneceu lá, ao lado do meu pai.
Uma hora da manhã. Não conseguimos dormir e o telefone tocou. Minha tia ligara para dar a notícia mais triste da minha vida: meu querido pai tinha morrido. Era madrugada de treze de janeiro. Esse último período sempre me leva ao poema que Augusto dos Anjos fizera para o pai dele que também falecera na mesma data. Arrumamos-nos enquanto minha avó nos dizia palavras de conforto e procurava uma roupa para vestir o corpo, agora imóvel, estático, mas amado, do meu pai.
Fomos para o hospital e lá tivemos uma última revelação dada pelo médico que o acompanhara durante todo o tratamento. Uma revelação que paralisou toda a família. Uma revelação que meu pai preferiu esconder para que não sofrêssemos como ele sofreu durante mais seis meses.
Meu pai já tinha feito duas cirurgias, além de sessões de radioterapia e quimioterapia. Daí veio a bomba. Logo após a segunda cirurgia, o médico lhe confessara que ele só tinha seis meses de vida. Até hoje não consigo imaginar qual foi a sua reação. Como se sentiu ao escutar essa confissão. Como contar para a família? Entretanto, decidiu não contar e pediu para o médico que assim também fizesse.
Só agora entendo o porquê que meu pai nunca nos deixou entrar com ele na sala do hospital. Só agora eu entendo o porquê que tantas noites ele sofreu, mesmo quando não sentia dor. Só agora eu entendo o porquê que ele preferiu me ver longe, a morar em outra cidade. Só não posso traduzir o porquê que ele fez tudo diferente até o último suspiro.

Um comentário:

Anônimo disse...

ELtinho
quando vi seu texto, pensei "Nossa como ELton escreve".
Mas quando comecei a leitura, fiquei muito emocionada. Senti como se tivesse ao seu lado no momento, presenciando as cenas.
Nossa, foi surreal a leitura do teu texto... Não toh aqui pra analisar sua forma de escrever, nem se tem erros ou não. Só quero que saiba que (pelo menos para mim) você conseguiu passar um pouco do que sentiu nesse momento tão difícil da sua vida.!
Que Deus te abençoe muitO! um grande beijO.!