quarta-feira, 30 de abril de 2008

Conserto e desconserto

Já de pé, seis da manhã, Licurí, assim como é chamado Carlos, mecânico, 35 anos, arruma sua caixa de ferramentas e sai para trabalhar. Enquanto sua esposa e seus dois filhos continuam dormindo, Licurí espera Cesinha, seu colega de trabalho na porta da oficina. É ele quem traz as chaves do estabelecimento. Licurí coça a barba crespa, boceja e como parte da rotina, xinga Cesinha por seu atraso diário. Não que o ânimo de Licurí seja o de uma pessoa séria, nervosa, que se irrita fácil, pelo contrário, é quem mais faz os clientes rirem com seu espírito curtidor.Graças à sua paciência manobra com facilidade as pequenas peças do motor, escuta-o para descobrir o problema, aperta daqui, folga dali com o praio ou o alicate bomba.Porém, o atraso de Cesinha todos os dias, tira a tranqüilidade de Licurí logo cedo. Ao abrir o portão e sentir o cheiro forte de graxa e óleo que dormiu no ar, Licurí volta à calma. É o cheiro que faz parte da sua vida desde os quinze anos, que ele aprendeu a gostar, que o acompanha em casa, e aonde quer que vá preso em suas mãos.A pontualidade e a competência são traços de Licurí, que se tornaram símbolos de referência da oficina Cacha Prego. O baixinho de 1.56m não deixa cliente nenhum na mão por atraso ou serviço mal feito. Olhos graúdos de rosto redondo, cabelos bem pretos, desde menino sonha em ter um carro, mas tem se contentado com ter o dos outros na sua mão por algumas horas ou um dia.As peças amontoadas preenchem o espaço de um cinza nublado, que contrasta apenas com alguns calendários coloridos pendurados na parede. Loiras e morenas sorriem com suas poucas roupas, enquanto Cesinha e Licurí estão debaixo dos carros ou com a cabeça enfeada no motor. Um radinho de pilha divide o som ambiente com os ruídos cintilantes dos metais. A oficina não abre só um dia, domingo. Licurí costuma dizer: “domingo não é dia de conserto, mas de desconserto”. E é assim que é.Quando sai de casa deixa a mulher zangada, apesar de ela saber do seu compromisso com o time Estrela Azul. Licurí é o lateral direito que mais corre, pequenininho, vai da ponta do campo ao outro com uma ligeireza e eficiência que faz a diferença no desempenho do time.Duas e meia da tarde Licurí chega ao estádio, aperta a mão dos meninos que jogam bola em frente à entrada. Vai direto para o vestuário. Tira da mochila de napa, branca, uma chuteira preta, de cadarços longos, desgastada e com alguns rasgos na lateral. Licurí não costuma limpá-la e por isso o preto fica escondido por trás de uma cor empoeirada. Veste o uniforme do time, com toda calma e concentração. Por seu tamanho e físico franzino a roupa fica sobrando em todos os cantos. A blusa mais parece um vestido e o short uma calça. Mas ele dá um jeito pra que tudo favoreça e não o atrapalhe. Nos cinco dias da semana, Licurí espera ansioso o jogo. Quando entra em campo se sente outra pessoa, vive momentos que o dia-a-dia corrido não lhe proporciona. Quando termina o jogo, ele ri e diz que fica feliz em ver o estádio cheio, e que ele é o único jogador que a torcida grita o nome sem ter feito nenhum gol. Muitos da arquibancada gritam: “ Êta baixinho que corre!;segura o Licurí que eu quero ver !” Licurí desconcerta os zagueiros, deixa-os perdidos atrás dele. Com tamanha rapiz não há quem o pare. Entorta a coluna dos adversários com seus dribles de pequeno ousado. Chega na linha de fundo e cruza. Seu companheiro mete a cabeça na bola e faz o gol.

Aline Santos

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