quinta-feira, 8 de maio de 2008

A voz da sabedoria

Matéria editada

Histórias de duas idosas que convivem na Casa dos Velhos

Vanhise Ribeiro

O sol incidia vigorosamente sob a fachada branca do antigo casarão e gerava certo desconforto aos olhos que, aos poucos, desvendavam a beleza minuciosa da arquitetura do prédio. Na entrada, uma das paredes ostenta uma placa. Nela, data, nome da instituição e de sua idealizadora guarda discretamente a memória desse lar que comemorou, no último dia 8 de maio, 45 anos. A Casa dos Velhos de Cachoeira é um lar modesto e aconchegante, destinado a acolher, cuidar e proteger os idosos. Atualmente, são 38 velhinhos. De lá, duas histórias nos fazem redescobrir aspectos sombrios e encantadores da velhice.
A visita não era esperada, daí a surpresa do seu olhar. Pele sensivelmente branca, fisionomia cansada, traços visíveis que o tempo imprimiu ao longo dos seus 81 anos de vida. Ubaldina Valquiria Rodrigues é como ela se apresenta de forma lúcida. Seu olhar revela-se terno, introspectivo. Ligeiramente desconfiada, sua voz palpita por instantes ao ser interrogada sobre o seu passado. Dúvidas parecem rondar os seus pensamentos, manifestando-se levemente por expressões em sua face. Aos poucos, descortina a sua história.
Aposentada, revela que começou a trabalhar 'novinha', em fábricas de charuto de Cachoeira. Aos 15 anos, na Leite Alves, passava os charutos na gelatina, empacotava-os. Trabalhou aos 20 na Suerdick, enquanto sua mãe trabalhava na Costa Pena, em São Félix. Ubaldina gosta de procissões e novenários, mas confessa ter freqüentado bares e festas. “No terno, saía na frente do cordão. Hoje, não tenho mais a mesma alegria”, diz, recordando das amigas. De todas, só resta ela.
Sobre a família, apenas parentes distantes, exceto uma sobrinha, que não a visita faz um tempo. Teve um filho, que faleceu aos dois anos de “uma febre que não passava”. Sua mãe morrera do coração, pouco depois. Esses assuntos a sensibilizam. A saúde lhe falta. Já passou por oito cirurgias. Numa delas retirou por completo a mama esquerda e o ovário. Na mama direita, também fez cirurgia para a retirada de um caroço. Atualmente, queixa-se das varizes. Relembra as tarefas que realizava cotidianamente na casa de seus antigos patrões, em Salvador, onde trabalhou como doméstica, durante muitos anos.
Após seus patrões terem falecido, e não lhe restar nenhum familiar que pudesse tomar conta dela, a trouxeram para o abrigo, quando Gésia ainda o coordenava. Lúcia de Sousa Batista, atual administradora da Casa, conta que Gésia Miralva Santana foi a idealizadora do abrigo. Desde que trouxeram Dona Ubaldina para o abrigo já se passaram 11 anos. Desejava ter alguém por perto. Por isso, gosta dos domingos, dia em que recebe visitas, geralmente de evangélicos. “Gosto de ouvir eles falarem de Deus, já que não posso ir à missa por causa das pernas. Peço a Deus para descansar”, revela.
EXCEÇÃO - Apenas 4 a 5% dos velhinhos que residem no abrigo possuem famílias. Antônia Santos, “que de santo não tem nada”, como ela mesmo declara, tem 92 anos e faz parte da pequena minoria que procura o abrigo por conta própria. Pele negra, semblante afetuoso, usa colares de pérola no pescoço, brincos, anéis e um relógio no pulso. Com voz altiva, lucidez espantosa, entusiasmo invejável, mal se apresenta e de forma desinibida começa a relatar aspectos de sua vida. O pai era vigilante da ponte da estrada de ferro, a mãe engomadeira de ricos senhores da região. Ainda menina, destalava fumo nos armazéns. Rigorosa com números e datas, releva ter aprendido, em 1936, a fazer charutos com sua mãe, e de ter iniciado em 1937, na Suerdick, uma longa vida de trabalho: 33 anos dedicados ao fumo.
Dona Antônia ainda consegue listar a identificação dos diferentes charutos com que trabalhava constantemente. Talvez esteja aí o motivo de seu fascínio por referenciar os acontecimentos de sua vida por datas, idades e números. Ela teve seis irmãos, deles, só uma irmã ainda vive e mora em São Paulo. “Foi minha sobrinha que me trouxe pra cá”. A idade e a saúde já não a fazem mais se adaptar a climas diferentes do que sempre esteve acostumada. E diz: “não quis ir com ela pra São Paulo e não achei ninguém pra ficar comigo, aí o jeito foi vir para cá”. Mora no abrigo há oito meses, desde o dia 22 de agosto, quando uma neta de consideração que cuidava dela casou e não teve mais como dividir as atenções.
MORTE – Dona Antônia lembra de sua mocidade, das festas e bailes de carnaval, da beleza dos trios, dos carnavais nos clubes, das pranchas, carros alegóricos, das tradições regionais que seguia à risca, desfilando de careta por dois dias seguidos na festa de Maragojipe. Fala de sua eterna paixão por Albertino Francisco, que morreu há dois anos. Um quadro desenhado por um retratista eternaliza a união de ambos e a faz recordar saudosamente desse amor.
Conta que ele era casado com outra mulher, mas chegaram a morar juntos e tiveram um filho, que morreu aos quatro meses de vida por motivos que ela não sabe ao certo explicar. Hoje, Dona Antônia transpõe todo cuidado e o carinho às suas bonecas que ficam em sua mesinha, as quais ela chama de “filhas”. A tarde vai indo embora e Dona Antônia fala que está na hora de ir para a copa, onde gosta de ficar um pouco com os colegas do abrigo, ajudando as funcionárias a tomar conta de Dona Zezé, uma senhora bem debilitada, que teima em se levantar da cadeira. Resmunga em voz alta por um certo Bastião: “quero ir embora”, ela diz repetidas vezes. A funcionária me conta que Dona Zezé chama pelo padrinho já falecido. E que, por esta mania de se levantar a golpes fulminantes da cadeira, já se machucou feio. Mais um ímpeto e uma frase toca nossos corações. “Quero morrer”, diz Zezé, num lamento que mais repercute como uma súplica. Dona Antônia retruca, como uma espécie de consolo: “A gente só morre no dia que Deus quiser!”.

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