terça-feira, 11 de novembro de 2008

Outra dose

Astrude Modesto

Ressaca. Dor de cabeça e sono. Ela foi dormir às quatro horas da madrugada e acordou às oito e meia da manhã. No caminho para a faculdade: a cara inchada, o estômago quente e o sol queimando os paralelepípedos das ruas. Ainda tinha parte do dinheiro que pediu emprestado para comprar cerveja e cigarro na noite anterior. Precisava ingerir alguma coisa. Um real e quarenta centavos. Misto-quente e um suco. Ela comeu Bukowski. Tanto mal ele fez àquele espírito e àquele estômago!
Ressaca. Para a aula das oito horas, ela chegou às nove e quinze. Sempre atrasada. A porta rangendo e o sorriso sem graça. O círculo formado, todos sentados em suas cadeiras e os textos nas mãos. Na verdade, eles que são loucos. Como pode alguém acordar às sete da manhã e ser feliz ao mesmo tempo? Estava difícil concentrar-se na aula, mas o assunto era interessante. Prometeu organizar-se no próximo semestre e acordar todos os dias às sete da manhã. É preciso disciplina. Ela também não está feliz acordando tarde. Aliás, por que não tira aqueles olhos de angústia da cara? Menina mimada. Ela só queria tomar um banho, escovar os dentes e dormir. Não dormiu em casa na noite passada. E a casa está uma bagunça: sem comida, a pia cheia de louça e daqui a pouco não terá mais roupa limpa.
Ressaca. O professor pediu para que cada um escrevesse um texto sobre o seu dia. Que dia? Dor de cabeça e sono. Ela mal começou o texto e precisou do primeiro cigarro da segunda-feira amanhecida. Passou mais de uma hora para escrever dois parágrafos. Quanta dificuldade! Escreveu e reescreveu os dois parágrafos. A aula acabou às doze horas e ela sentiu certo alívio. Poderia terminar o texto mais tarde. Tinha aula de sociologia geral às treze horas e não dava tempo de ir para casa. Teria de comer o segundo sanduíche do dia na rua. Seria o almoço. E mais um cigarro.
Ressaca. Na rua, até os prédios e carros suavam. Ela também suava antes de ir para a sala. Lavou o rosto no banheiro. Não tinha sabonete e ela enxugou a cara com papel higiênico. Novamente atrasada, ela entrou na sala às treze horas e trinta minutos. Merda! Perdeu vinte minutos de um filme que a professora passava para os alunos. Provavelmente, depois teria de escrever um texto sobre o filme também. Desenho animado com um bando de insetos. Lembrou-se de quando era criança e pensava que as formigas também iam para a escola. Ela imaginava o tamanho dos cadernos e lápis que elas usavam. E os pequenos óculos da professorinha formiga. Por que toda professora primária usa óculos? Menina esquisita. A aula acabou às quinze horas. A professora de sociologia pediu para cada pessoa escrever um texto que fizesse ligação entre o filme e as idéias de Karl Marx. Era para entregar na quarta-feira. No filme, um exército de formigas lutava contra a exploração de alguns gafanhotos. O proletariado e a burguesia. E todo aquele blábláblá. O pai dela é comunista. Ela ainda não sabe o que ela é. Foi para casa.
Ressaca. No caminho, parou para comprar algumas verduras, precisava comer algo decente. Cebola, tomate, batatas e uvas. As cenouras e as mangas estavam horrorosas. Era fim de tarde e todo mundo já tinha comprado as frutas e verduras mais bonitas. Devem ter sido aquelas pessoas que acordam às sete horas da manhã. Um real o monte de uvas na lata de um litro. Uvas para Sávio, o mico do vizinho. Ele fugiu da gaiola e foi morar na área de serviço do apartamento onde ela mora. Ela chegou ao apartamento. Finalmente, poderia tomar banho e escovar os dentes e dormir. Olhou a casa e o monte de lixo. Ele acumulava-se desde a sexta-feira. O caminhão só passa uma vez por dia. E pela manhã. Ela chamou Sávio e ele não apareceu. Será que o raptaram novamente? Ela deixou algumas uvas cortadas para caberem nas mãozinhas dele. Cadê o saco com as verduras? Ela esqueceu na banca. Mas não esqueceu as uvas. Ela gosta de bicho. Mas não gosta de gente. Menina esquisita. Ainda estava bêbada.
Ressaca. Ela não dormiu. Lembrou que precisava fazer uns cartazes e escrever os dois textos. Comeu pão e lavou a louça. Tomou banho e escovou os dentes. Pegou dinheiro e saiu. Fez os cartazes e não escreveu os textos. Tinha aula às dezenove horas e trinta minutos. Seria uma continuação da aula da manhã. Ela chegou antes do horário. Teria de terminar o texto. Mas não tinha inspiração alguma. Precisava de um cigarro. O bar da frente já estava fechado. Que saco! Ela ainda iria fazer algumas entrevistas depois da aula. Tentou escrever, mas não conseguia. O professor leu o que ela já tinha escrito: três parágrafos. E a aula acabou. Entregaria o texto no outro dia. Eram nove e meia da noite. Ela foi para o bar fazer as entrevistas para a matéria que precisava entregar na outra semana. Ela faz jornalismo.
Ressaca. No bar, ela não bebeu. Mas fumou alguns cigarros. A entrevista fluiu. Ela conversou com a garçonete e o dono do bar. Conversaria com alguns clientes no próximo dia. Precisava voltar para casa. Dormir um pouco. Já eram quase onze horas da noite. Ela caminhou pela rua vazia. Caminhou pela linha do trem. A cidade ainda tem um trilho pelo qual o trem não passa mais. A noite e as fachadas dos sobrados antigos. Ela já estava sóbria. Os faróis acesos. O homem do carro pediu uma informação. Vira à esquerda, depois à direita, e segue direto. Sóbria, ela continuou no trilho. Precisava de uma bebida.

5 comentários:

Leandro Colling disse...

lindo texto, parabéns, o melhor que li nesse semestre. só uma coisinha tola: algo descente ou algo decente?

Leandro Colling disse...

ah sim, pq lindo? pq não se resume apenas a narrar o visível, mas tb usa metáforas, torna a narração literária. parabéns, adoro quando vejo alunos e alunas com texto assim. revigora minha esperança no jornalismo

Péricles Diniz disse...

... eu gostei muito também!
tem personalidade.

péricles

astrude modesto disse...

ops.. o erro foi corrigido.
Obrigada.
:)

rato disse...

eu adoro essa menina esquisita com suas ressacas, sempre vomitando seus versos intaladas em sua garganta!