segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Meia hora de D. Bete

Por Sandrine Souza

Ela andava naquele recinto apertado e volta e meia me surpreendia com um sorriso leve e tranqüilidade aparentemente inabalável que aos poucos desfazia a má impressão do primeiro contato. Concentrada, passou a mexer nos papéis; lavava pratos, cozinhava, experimentava o sabor da comida e atendia a homens mal vestidos que pediam cigarros e “pingas” pagas com moedas contadas. Era daquelas que acordavam junto com o sol e se esvairia cansada durante a noite. Os cartazes com mulheres sensuais denunciavam o público alvo do ambiente. Logo na entrada, baldes, vassouras e cadeiras de bar enferrujadas se juntavam com outras quinquilharias. Atrás, um fogão velho e sujo cozinhava, numa panela amassada e sem brilho, o ganha pão. O recinto merecia uma pintura nova, o amarelo da parede já estava mofado e arranhado. Havia uma pia entupida com vasilhas, resto de temperos e panelas velhas que denunciavam ter sido lavada às pressas; abaixo, uma cortina tenta esconder a bagunça.
Uma touca lhe cobria os longos cabelos crespos engundados numa polpa. Eram negros, mas o branco do tempo já apontava. Um avental sujo pendurado junto à porta estreita que dava acesso ao lugar, parecia desproporcional ao tamanho daquela mulher larga. Usa um vestido leve, folgado e com pouca cor, que contornam delicadamente o seu corpo e ressaltam sua pele negra. Lá estava, atrás do balcão do box, São Jorge do Mercado Municipal da Cachoeira, D. Dete cumprindo a sina de todos os dias pares.
Em todo o recinto prateleiras com copos, bebidas, cigarros e alguns objetos bagunçados entupiam o lugar. Nas beiradas da janela de vidro, no alto da parede e direção da pia, estavam figos comprados de um presidiário, feitos com “pedra de ariá pé” e, a imagem de São Jorge. O quadro com o dizer: “Se sua estrela não brilha... Não roube a minha”, os três figos espalhados e a corda de alho sugeriam que D. Dete estava preocupada com os olhares.
Um armário de aço branco era enfeitado com imãs de flores coloridas que remetiam à doçura da mulher e contrastavam com a sensação visual que o local provocava. As portas com marcas de gordura fechavam com a ajuda de um elástico encardido e um fio espiral de telefone. Sobre o armário mais panelas. Uma logo acima do armário, unia o box ao vizinho.
O cheiro forte de pinga misturado com o do cigarro e à melodia do padre Marcelo Rossi conformavam um ambiente cheio de contrastes. De longe outros cheiros e sons pareciam vir provocar os sentidos. No balcão sujo estavam copos com vestígios de cachaça, um pano-de-prato com girassóis sujos e vasos empoeirados que guardavam pão velho, talheres e condimentos disputavam espaço.
Por alguns segundos, D. Bete põe a mão no rosto demonstrando estar vencida. Depois se reergue com altivez. Às vezes postava os braços naquele balcão de cimento como se se achasse bela apesar dos aparentes mais de 60 anos. Usava brincos e outros adereços. O cheiro de carne cozinhando, passa a sobrepor os odores do lugar.
Depois de percorrer por meia hora as minúcias daquele ambiente me deparei com um calendário que me trouxe de volta ao dia 27 de dezembro e fez ver que aquela mulher vivia no mesmo mundo que eu.

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