segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Nada de novo, dinâmica de sempre

Camila Moreira

Ela acorda às 06:59, e antes que celular possa despertar o desliga. Como ela odeia aquele som! Olha pra cima. Pelo telhado a visível claridade. O sol invade a casa, o quarto, seus olhos, e sua mente avisando que o dia amanheceu. No rosto a expressão do desânimo por não poder dormir mais meia hora. Levanta-se vai ao banheiro, escova os dentes. “Nossa!”. Ih, olhou-se no espelho, não devia ter feito isso. Cabelo assanhado, rosto inchado, pele marcada, visão do inferno. E pra completar o astral, humor de “cão”. “Esse cara deve acordar às cinco da manhã”, murmura com uma voz grave de quem ainda não acordou direito, referindo-se ao vizinho, que põe o rádio numa altura nada agradável para quem acaba de acordar.
Volta e deita novamente, mesmo ciente de que já é hora de levantar. Dorme mais uma vez, e de repente acorda com o som da companheira de quarto que acaba de levantar e já diz: “Bom-dia”. Ela responde nada contente com a idéia de o dia ter amanhecido, e já imagina que agora realmente vai ter que ir para o banho.
Chuveiro ligado, água morna, pele arrepiada, frio. O som insistente do rádio que invade as paredes do banheiro lhe perturba anunciando dessa vez o caso do namorado que atirou na namorada, e depois tentou o suicídio. “Agora é graça, todo mundo quer ser Lindemberg”, afirma. Porque será que ela tem que conversar todos os dias com o rádio?
Quem é ela? Ela é Camila, 20 anos, universitária, irritadíssima, odeia acordar cedo. Sai do banho, veste-se. E a movimentação dentro de casa continua. Agora todo mundo está de pé, a sua companheira de quarto e a amiga do quarto ao lado. O humor melhora consideravelmente, e o som do rádio que anteriormente gritava em seus ouvidos, agora só fala, fala e lhe provoca risos.
Despertou agora já foi, não pára mais de falar e o alvo central passa ser o rádio do vizinho. Agora ela já não se contenta em fazer comentários consigo mesma sobre as locuções e socializa a conversa. “Vocês ouviram isso?”, pergunta entre risos, “o cara perguntou para o embaixador da Holanda como resolver a crise mundial, no meio de uma Bienal. Se ele souber, manda ligar pro Obama avisando”. Fala enquanto faz um leite. Bebe, escova os dentes mais uma vez e sai.
O dia já começa anunciando que vai ser muito quente, às oito da manhã o abafamento já se faz presente. O caminho para faculdade parece longo, o silêncio é grande entre as amigas, e só é quebrado quando em frente ao Quarteirão Leite Alves a imaginação flui: “Imagina o calor que não deve fazer aí dentro?”. E uma das amigas comenta: “Os pedreiros não tão fazendo nada, acabou a tinta, agora pronto, tudo com a cara pra cima”.
Até aí o dia de Camila estava bem normal, corriqueiro. Tudo indo de acordo com o esperado, a não ser pelo atraso que não é de costume, o calor que não é desejado, e a pressa de quem precisa correr, mas tem impregnada a soma da preguiça da aula matinal mais aquele calor que resulta numa moleza de dar dó.
Enfim chega ao CAHL, ela foi se arrastando se atrasou, mas chegou. Aula no laboratório, pelo menos isso. Sala fria, parecia que tinha entrado em outro mundo. Mundo que a deixou mais disposta, menos mole, mais ativa. Professor na sala, texto pra discutir. Discussão longa, produtiva, até empolgante em certos pontos. Durante a aula a preocupação, livro grande pra ler, muito a ser feito, a ser lido, pouco tempo disponível. “Vixe, esse semestre tá demais! Quem mandou ocupar?”, brinca com a colega ao lado.
Exercício em sala. Enquanto ouvia o som das teclas ao seu redor, apressadas, concentradas, produzindo, Camila pensava que deveria ter aquele aparente dom de captar a informação e decodificar rapidamente como aqueles ao seu redor. Mas enfim não tinha, e aquele exercício já estava esquentando sua cabeça. A fome apertou, já estava na hora de ir pra casa almoçar. E foi. Voltando pra casa, agora sim a coisa estava feia, o calor era infernal, em Cachoeira a temperatura devia ser uns 72º, isso na sombra, é claro. Acha muito? Experimente sair nas ruas em pleno meio-dia. A coitada estava com calor, muito calor, mas o caminho era longo e a fome sua companheira inseparável. Seus olhos nem conseguiam abrir direito, a luz estava muito forte, forte e quente. Suor e fome se confundiam e a pressa de chegar era tamanha que as pernas pareciam não poder alcançar a velocidade que o corpo, de fato, queria.
Chegando em casa, na correria foi pro banheiro. Banho, água fria, gelada e a sensação impagável de frescor, o dia poderia ter acabado ali que o final feliz de certo já estava garantido. Mas ainda tinha a fome, e esse dia não podia acabar ainda, não assim com fome. E ela comeu, comeu não, devorou não que a comida estivesse das mais saborosas mais a fome naquele instante foi o tempero dos sonhos de qualquer alma famigerada, como a de Camila.
Já estava na hora de voltar pro CAHL novamente, agora fresca, alimentada, tudo nos conformes. E foi só pôr os pés na rua, pra aquela velha sensação de abafamento voltar, um pouco mais contida, mas não ausente.
De volta a Universidade, de volta ao laboratório, uma da tarde. A aula agora é outra, mas os trabalhos continuam, estudo dirigido, professora estressada. A tarde estava prometendo. Começou até bem, conversas paralelas, texto básico no computador, até que todos se reúnem a frente da sala. Sentados em círculo, todos só ouvindo a professora dar o maior sermão do semestre. “O site está uma bosta, e a culpa não é só do professor”, afirma a professora. “Eu sou concursada, ensino em universidade federal, o meu está garantido no final do mês.” Ela pegou pesado, e a consciência de Camila pesou, a dela e de com certeza do restante que tem algum interesse num bom futuro profissional. Mas naquele momento, naquela sala que pela manhã lhe dava uma sensação de bem-estar, o sentimento não era bom. Ela sentiu-se presa, e aquele ambiente a deixava triste, o silêncio lhe deixava enraivada. A vontade de falar era calada pelo sentimento de culpa que não era abrangente a toda situação.
Mas existia e a impedia de se manifestar. Não que ela discordasse das críticas feitas, isso não, consciência ela tinha. O que lhe incomodava eram os argumentos finais utilizados, e talvez, quase com certeza, eles nem tenham sido usados com um intuito ofensivo, mas foram usados e foram suficientemente capazes de fazer Camila esquecer por um instante que a questão não era meramente salarial e sim de compromisso com a disciplina. Mas ela lembrou, antes tarde do que nunca lembrou, e impediu que o impulso de pedir a voz fosse levado até o fim. Crítica pertinente, argumentos finais desnecessários, consciência pesada. A tarde não estava terminando bem.
Saindo do CAHL tudo parecia muito tranqüilo, fazer matéria era o propósito dela. Encaminhando-se ao destino da entrevista uma surpresa. Pânico na rua, pessoas olhando com um ar de desespero, todos saindo na porta. No meio da rua um cidadão corria desesperado indo ao encontro de outros. Na mão ele trazia um instrumento que lembrava um facão, tão enferrujado que a pobre da vítima iria acabar morrendo de tétano. Nos olhos dele raiva, no dela medo. Na rapidez que aquele rapaz corria acertaria alguém com facilidade. A cena dava indícios de que terminaria em tragédia. O homem continuou correndo. Camila continuou andando, eles iam em direções contrárias, como se aquela cena não representasse muito, e de certo não representava. Aquela não era uma realidade com a qual ela estava acostumada a lidar, e não lidou. Deu as costas como se aquele mundo não fosse o seu, e aquelas pessoas meras espectadoras de uma desgraça previamente anunciada.
O que aconteceu depois? Ela não soube, seja lá quem foram as vítimas - se é que houveram – não tiveram seu pranto como despedida, nem sua lágrima como bagagem. Camila e o tal homem armado foram em direções opostas. Ele correndo para encher as mãos de sangue, enquanto ela andava em direção ao seu futuro profissional: Uma matéria esperava para ser escrita. De certa forma os dois estavam caminhando no mesmo sentido, a direção era as páginas dos jornais. Mas ela não teria seu nome nas páginas policiais. Não nesse dia. Não nessa matéria.
Saindo daquela cena ela foi tentar produzir, mas o local desejado já estava fechado. Não deu para cumprir o objetivo jornalístico naquele momento. Só lhe restou caminhar para o local da cidade preferido: a beira do rio.
Ar fresco, vento no rosto, o pôr-do-sol. Lugar perfeito para reflexão. O silêncio seria absoluto se não fosse aquela menina que por um descuido escorregou, caiu no rio e deixou as amigas em pânico com a possibilidade de um afogamento. Besteira! A água não estava mais alta que os seus joelhos.
Ainda assim o local estava lindo. A água brilhando e aparentando uma limpeza inexistente. O pôr-do-sol, a ponte, a vista de São Félix, a água corrente e o verde. Tudo aquilo lhe invadiu como se o mundo todo fosse aquela paz de encher os olhos de alegria. É, a tarde havia terminado bem.
Noite escura e o destino matinal se repetiu: Casa via CAHL. A aula noturna deixou o dia longo demais. O cansaço estava aparente, e a noite lembrou o dia. Embora o calor tivesse ido embora, o sono voltou só que agora com a lua como testemunha. Aula, trabalho, resenhas. Sem rotina, sem marasmo, nada de monotonia. Mais um dia com cara de velho. Nada de novo, o dinamismo diário se manteve.

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