sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Muito mais um depósito do que um salão

Caio Barbosa
O cheiro é aquele próprio de barbearia – uma mistura das fragrâncias de espuma de barbear, de gel pós-barba, de cabelo cortado. É... O cabelo cortado parece ter cheiro também.
Tudo é muito escuro, também pudera, a maioria dos objetos é nas cores marrom, cinza e vinho. Aquilo que teria cores mais vivas, como a parede, que um dia foi azulada, está empretecido por conta de uma poeira que denuncia que a última faxina foi feita há décadas.
O ambiente é repleto de plantas, todas cobertas por uma crosta de poeira. Nem se sabe como ainda sobrevivem. Nada parece muito higiênico, a não ser a navalha e as lâminas, que, antes de serem usadas, são desinfetadas com álcool. Mesmo assim, quem é muito fresco, não deve se sentir à vontade para se barbear ou cortar os cabelos naquele lugar. Pensa logo que pode pegar uma micose ou passar por algum outro problema. A instalação elétrica não foi feita com um mínimo de cuidado. Os fios aparecem remendados e emaranhados no teto de forro branco, amarelado, com rachaduras e várias teias de aranha por conta do tempo. Mas os profissionais parecem trabalhar muito bem.
Por mais que se tente, não se consegue ter uma conexão no olhar. O número de objetos é imenso, alguns cuidadosamente dispostos, mas grande parte deles amontoados. O engraçado é que toda aquela bagunça ainda consegue transmitir a idéia de organização. Provavelmente, o dono daquele lugar sabe tudo o que tem ali dentro e sente falta do que é retirado de lá. A idéia que se tem é de que o Salão Glória e Armarinho é também um depósito de algum colecionador, de um alguém muito apegado a tudo e qualquer coisa – gaiolas, ventiladores, latas, vasilhas, troféus, pôsteres do Vasco, do Flamengo e do Palmeiras, revistas, jornais e livros com folhas amareladas e envelhecidas, tanta coisa. E nem tudo é velho não. Uma televisão de catorze polegadas, por exemplo, tem um modelo que saiu no mercado há dois anos no máximo.
Uma geladeira marrom e enferrujada e um frigobar branco, mas também com pontos de ferrugem, devem guardar o almoço e lanches dos que trabalham ali. Em cima do frigobar, estão uma assadeira de alumínio, com as bordas tortuosas e pretas por já ter pegado gordura no cozer, e um motor de um liquidificador Walita que aparenta ter mais de vinte anos.
Ao fundo, uma porta esconde um vão com mais um mundo de objetos. Para o dono do salão, aquele ambiente é o depósito do estabelecimento. Para um visitante, que nem chegue a tomar conta daquele quarto, toda a barbearia é um espaço onde se guardam pertences. Segundo ele, aquela sala é oferecida aos amigos – um vendedor de acarajé que guarda utensílios lá, por exemplo.
Ao lado da porta do depósito, está uma mesa grande. Parece ser o local usado para as refeições, pois nela estão garrafas plásticas de água mineral que guardam óleo e azeite, três latas de leite Itambé, reaproveitadas, talvez para guardar alimentos, uma marmita, daquelas de três vasilhas que se encaixam e podem ser carregadas juntas, uma garrafa térmica de 20 litros, daquelas com torneira, que está quebrada.
Devem ser poucos os que procuram o Salão Glória exclusivamente para os serviços de barbearia. Aquele rico depósito reacende lembranças. Para quem gosta de voltar ao passado, levar alguns instantes naquele ambiente pode ser confortante. O relógio que está pendurado na parede, por exemplo, é um que me faz lembrar a minha infância. Lá em casa tinha um daqueles. Ele parece mais um quadro. Tem uma pintura de um lago e uma casa de campo. Os números em algarismos romanos e os ponteiros de plástico ficam escondidos sob aquela imagem. Por ali, eles parecem andar mais devagar.

4 comentários:

Mariana Monte disse...

Muito bom o texto de Caio. Consegue trasmitir a idéia de bagunça e passado que o Salão também passa a quem entra por lá. E também descreve muitos dos milhares de objetos curiosos do local.

Leandro Colling disse...

bom texto, transmite a sensação e descreve bem. se jogue

Sandrine Souza disse...

Caio, gostei especialmente do final do texto, sei lá... Acho que por ele trazer a descrição de sensações que o lugar provocou em você... Sai do superficial, do simplesmente relatar o visual, e vai para o plano do sentir o lugar.
Acho que faltou a descrição de um personagem e ousar um pouco mais, como fez no final.

Caio Barbosa disse...

Realmente sou meio preso para ousar. Pelo menos nesse caso dos textos (risos). O final, por exemplo, foi sugerido pelo Leandro. Mas vou me aprimorar.